A
DAMA DAS CAMÉLIAS
Agustina Bessa-Luís
Direis que histórias velhas não
vos interessam. Mas aí está como vos enganei. E, como gostais
de ser enganados, isso é um bom começo para aguçar
a vossa curiosidade.
A protagonista da história de que aqui se trata era uma estudante
finalista de Letras que não se fazia notar por nada. Nem sequer
usava óculos, tinha uns olhos castanhos como nove milhões
de portugueses e, a não ser pela sua inclinação teatral,
ninguém reparava na Estefânia, nome este adulterado para
Fani, pelo muito que lhe custava ter sido baptizada com nome tão
invulgar. Só as rainhas aguentavam nomes assim, e o mais natural
é que uma rapariga de vinte anos se chame Sandra ou Carla, ou Vanessa,
na melhor das hipóteses. Tendo nascido na Estefânia, em Lisboa,
a mãe dera-lhe esse nome antiquado em honra da avenida onde ela
própria nascera e se criara junto duma loja de papeis de parede.
Havia-os de todos os gostos, imitando damasco tão perfeitamente
que pareciam seda verdadeira. Mas não eram.
Fani, cuja avó e mãe tinham gostado de teatro, estava talvez
inclinada para uma carreira de vedeta em que a coroa de glória
podia bem ser A Mãe Coragem. Se bem que Fani não tivesse
temperamento dramático. Era risonha e bem-humorada e possuía
uma particular fantasia para contar anedotas que, na sua voz límpida
e fresca, resultavam sempre um pouco veladas de obscenidade. Era muito
popular entre os colegas que não perdiam o seu jeito de efabular,
mas na realidade não despertava paixões. Talvez os jovens
de hoje sejam assim mesmo: são mais coloquiais do que confidentes,
e isso tira-lhes uma certa faculdade mítica. Fani fazia de tudo
uma irresistível risada e gostava mais do aplauso do que do amor
de alguém.
O motivo por que lhe chamavam a Dama das Camélias era bastante
bizarro. Tendo lido as primeiras páginas do romance de Dumas Filho,
onde se diz que a linda Duplessis aparecia no teatro com um ramo de camélias
brancas todos os dias do mês, excepto cinco dias em que trazia rosas
vermelhas, sem que ninguém soubesse a razão. Fani deu a
explicação que a tornou famosa: “É bem de ver que
ela queria avisar os homens da data da menstruação. Era
muito profissional. Evitava maçadas, porque não há
nada pior do que nos tomem por coquetes quando nos dói a barriga.”
Fani passou a usar uma camélia branca na lapela ou no decote; o
que julgavam ser a flor Chanel, era afinal uma maneira de se confessar
disponível. Para a velha Chanel talvez fosse uma nota provocante
na sua arte desprovida de sensualidade. A provocação está
muitas vezes no sentido contrário da sensualidade. Fani pensou
nisto e a sua inteligência iluminou-se. Até aí fora
uma rapariga sem inibições, o que não significa ser
uma mulher fácil. Em geral, não ter inibições
quer dizer que a pessoa é fria e cautelosa; o mais das vezes, quer
dizer que não acredita no amor.
“O amor?”, disse Fani. “Nunca pensei muito nisso, mas acho que as mulheres
não são românticas. Quando parecem românticas
estão anémicas. Só os homens são românticos
e exagerados. Amam e matam e constroem arranha-céus, como se fosse
tudo a mesma coisa, e até é.”
Estas coisas só eram ditas entre mulheres, em horas hilariantes
ou só prestáveis, em que contavam segredos umas às
outras e se ajudavam em coisas de toilette. Tinham um sentido do essencial
que as levava a serem leais quando se tratasse de encontrar um marido
para uma amiga ou de salvar um estranho da falência. Mas, em contrapartida,
não davam a receita dum bolo nas proporções adequadas
e invejavam-se de morte. Fani sabia que o amor é uma doença
contagiosa e muito rara. Os costumes servem para simular tudo o que se
não é capaz de aprender nem sentir. O amor, entre outras
coisas.
“O amor das mulheres deriva do espírito de obediência, que
é uma virtude em desaparecimento. Foi primeiro um constrangimento
e, até se transformar em virtude, levou muito tempo. Milénios.
Agora não somos mais obedientes, e o prazer que se desenvolvia
entre escrava e senhor já não existe. O sexo é um
mecanismo em crise.”
Fani tinha pena de ser admirada pela sua lógica e não pelos
seus lindos olhos. Já não havia rapazes que a seguissem
na rua nem que namorassem de janela. Pedir uma rapariga em casamento era
completamente ridículo, tratando-se de alguém como ela “assumidamente
livre e sem preconceitos”. Mas não se opunha a vestir-se de noiva,
achava isso um ritual pagão bastante aceitável. Só
não concordava com a lista de convidados, gordos e deploravelmente
vestidos. O mundo devia ser frequentado só por gente esbelta em
que a nudez fosse uma forma de cultura. Chanel, a velha Chanel, iniciara
essa espécie de moral, com o seu ódio aos seios, que desfiguram
a silhueta.
Fani cogitava nestas coisas e estudava sem interrupção,
preparando-se para o futuro. Frequentava inúmeras aulas, fazia
tese sobre Fernando Pessoa, graduava-se honoris causa, tinha um curriculum
impressionante.
“Impressionante!”, disse o seu amigo Bernardo que, no entanto, não
gostava do que via. Mulheres dinâmicas e competentes. Achava-as
completamente congeladas. “Como perdizes num tabuleiro de esferovite.
Sabem ainda ao que são, mas vão desaparecer do mercado,
como toda a espécie de caça.”
Bernardo tinha pena de não ter vivido no tempo do jazz. Era pequenino,
não havia roupa que lhe assentasse bem e os seus heróis
eram dos anos vinte, como Harold Loyd. Nessa época havia um grande
apreço pelo homenzinho desastrado, que era o que ele era, Bernardo.
Fani achava-o “avulso”, como uma colher de prata que sobra em qualquer
estojo.
Não era capaz de o achar original. Um dia, chovia e estavam ambos
sem guarda-chuva à saída do cinema, não se atrevendo
a dar a corrida para o parque de estacionamento, quando ouviram alguém
dizer:
“É a Dama das Camélias, olha, olha!”
Este olha, olha vale tanto como cinco minutos de aplausos numa noite de
estreia. Fani disse para ela que era célebre, embora as veredas
da celebridade lhe parecessem frequentadas demais. Onde se situava, a
vertiginosa Estefânia, com os seus títulos doutorais e os
seus amigos em enxame? Olhou pensativamente para Bernardo e, de repente,
encontro nele um ponto misterioso e fugaz que se chama surpresa. Foi um
olhar trocado com tal desabrimento que nada ficou por dizer no fundo do
complicado factor humano. De repente pareceu completamente dispensável
saber-se quem era um e outro; que família, emprego ou IRS lhes
correspondia. Era o amor, com todas as suas delinquências menores
e toda a sua verve luxuosa de mentiras e combinações fatais.
“O amor!”, pensou Fani.
“O amor!”, disse Bernardo.
Ninguém mais, no seu grupo, teve sossego. No fundo, o que contribuíra
para esse estado de exorbitância fora o narcisismo despertado por
aquele olha, olha. Fani respirou os ares do Paraíso como Eva ao
ser notada pela serpente. E tudo se modificou na sua vida.
O que se modifica numa pessoa que ama? Primeiro o penteado.Fani sentiu
um desejo irreprimível de ir a cabeleireiro e cortar o cabelo em
escada, pintando-o a seguir de vermelho-carmim. Queria fazer qualquer
coisa de desesperante que lhe desse a medida da mediocridade em que tinha
vivido. “Eu amo, portanto carrego com todas as culpas do mundo, a começar
pela indecência dum cabelo arrepiado.” A cara pálida e os
olhos tristes sobressaíram poeticamente daquela devastação.
E Bernardo sentia orgulho dela, o seu espírito crítico tinha
desaparecido. Um homem que ama é um homem morto, não tem
espírito crítico.
Fani modificou-se tão depressa que nem teve tempo de se reconhecer
na sua nova ordem. A sua revolta desapareceu e ela tornou-se amável
e distante, como as princesas dos contos de fadas. Não imaginamos
que o que torna as princesas dos contos de fadas tão insuspeitas
na sua serenidade é o amor que sentem e para o que foram chamadas.
Uma espécie de abismo sem regresso e que impede contacto com o
mundo real.
“O mundo real não existe”, disse Fani. Os cabelos tinham crescido
e tinha-os compridos e sedosos. Esquecera-se de os cortar e pintar de
vermelho. O vermelho era-lhe proibido, não sabia porquê,
até porque lhe agradava bastante.
Ninguém mais do seu grupo teve paz. Casavam-se e faziam uma vida
cheia de ambições sem sentido. Desejavam ser diferentes,
atingir pontos altos na escala humana. Como não conseguiam, tornavam-se
deprimidos e doentes, com doenças estranhas e de que ninguém
ouvira falar. Filiavam-se em seitas, cometiam crimes, compravam móveis
e casas. Isto porque tinham a ideia de que o amor existia, que nalgum
lugar, no Pólo Norte ou nos Himalaias, ele existia, natural, displicente
e redentor.
Eles amavam-se. O que é amar um homem fraco e que usava aqueles
óculos de aros grossos? O que é amar uma mulher eficiente
e de mau génio, como Fani tinha às vezes? Outras vezes era
como um lago, mansa e comovedora. Era um mistério para todos, porque
para todos o amor era só distribuído a pessoas extraordinárias
e não a pessoas desengonçadas como Bernardo, que nunca teria
o nome na História. E Fani, tão esperta que até desvendara
a metáfora da Dama das Camélias, mas que não era
ninguém, mesmo nada depois daquela troca de olhares à porta
do cinema, numa tarde de chuva. O amor torna as pessoas tão vulgares
que não se dá por elas. Excepto se aquele momento desordeiro
do amor, em que tudo é possível e completament aceitável,
foi recebido como um golpe na testa da humanidade, ou seja, aquele desconhecido
que vai a passar, aquela desconhecida que vai a passar. Eles não
fazem nada de especial, nenhum gesto especial. Mas alguma coisa sangra
no seu pensamento, abre-se uma dor profunda no seu lado sobre o coração.
Estão contaminados. O amor atingiu-os, não se salvam nunca
mais. Estão perdidos, felizes, não fazem mais parte dos
bons cristãos, dos bons atletas, dos bons pais de família
e ministros das obras públicas. O amor faz destes destroços,
o que em francês se diz ravages.
Casada, mãe de dois filhos, embora Fani tivesse perdido os atractivos
da juventude, não deixara de se interrogar vivamente sobre o sentido
do amor. O que a prendera ao marido naquele instante em que se entenderam
só com um olhar, sem que isso significasse um plano de vida, isso
ela não chegava a explicar. Até que um dia, estando Fani
num consultório de dentista com as crianças, se pôs
a folhear uma velha revista. O perfil dos arranha-céus de Nova
Iorque chamou-lhe a atenção e, de repente, teve a sensação
de mergulhar num mar de recordações. Nunca estivera na cidade
de Nova Iorque e conhecia apenas o aeroporto de Kennedy, onde passara
algumas horas em trânsito de Toronto para Lisboa. A sua vida profissional
levava-a a participar nos colóquios das universidades e viajava
por isso com relativa assiduidade. Conhecera gente que, longe de corresponder
à celebridade de que gozava, parecia ressentida e tristonha. Aprendeu
que as pessoas letradas são muito melindrosas e, às vezes,
mal-educadas. Nessa altura tinha visto de perto Patricia Highsmith, que
lhe dirigiu um sorriso demorado, algo suspeito na verdade. Fani reparou
no sobretudo de cachemira e nos grandes sapatões militares. Era
extremamente feia mas elegante duma maneira masculina e sóbria.
Quando percebeu que Fani não era uma acompanhante contratada pela
organização do simpósio, desinteressou-se com uma
espécie de irritação. Contudo, Fani tinha gostado
de falar com ela. Sobre o amor, evidentemente. Achava que os escritores
policiais sabem muitas coisas profundas sobre o amor e que os livros de
mistério derivam dessa matéria inesgotável.
Estando de regresso por Nova Iorque , e arrastando a sua pesada mala (nunca
soubera viajar com bagagem de rapaz novo, isto é, com pouca coisa),
entrou num dos buses que circulavam entre os terminais do aeroporto. Estava
quase vazio. Só num dos bancos da frente um casal, jovem ainda,
trocava sorrisos e frases de cumplicidade. Pareciam ligados por hábitos
que não eram propriamente domésticos. Eram provavelmente
amigos, e um pouco mais, que partilhavam o mesmo tempo de profissão,
viajando juntos com as suas pastas, as suas agendas e um par de mais extra.
Fani perguntou onde podia apear-se, e o rapaz disse:
“Para onde vai?” Tinha um ar perscrutador, cheio desse humor que é
uma forma de dar tudo por inacabado. O amor, a paz, as coisas felizes
deste mundo.
“Vou para Lisboa”, disse Fani.
“É em Portugal.” A jovem estava subitamente agressiva e fez descer
sobre Fani o pano de cena do drama da emigração, depreciativo,
quase cruel. Tinha pressentido o efeito desse encontro imaculado entre
um homem e uma mulher. Não foi mais do que isto. Um olhar em que
uma luz divina brilhou por um isntante. O rapaz saltou do assento para
a ajudar a descer a grande mala de viagem, e os óculos de grossos
aros caíram-lhe do bolso do casaco. “Eu devia olhar para trás
e sorrir. Ficava bem agradecer-lhe com um sorriso”, pensou Fani. Mas não
se voltou. Não sabia porquê, sabia que se parasse um momento
e se virasse para trás, o jovem descia e vinha abraçá-la
e nunca mais se separavam. Nunca mais se separavam, era tão simples
como água. Fani tinha os olhos nublados e já não
via o recorte dos arranha-céus de Nova Iorque, não via a
estátua da Liberdade como caída do céu ateniense
com o seu facho e coroa de pontas.
“Pode entrar, dona Fani”, disse a menina do consultório. “Não
vai doer nada.” E riu-se para a criança, o que o assustou.
Fani pegou na mão do filho e apertou-a para o tranquilizar. Estava
tão feliz com os seus pensamentos, que a criança ganhou
coragem, orgulhosa do amor da mãe.
Um dia, porém, em que tudo parecia correr pelo melhor (salvo os
pequenos acidentes que fazem da vida de família um sucesso para
a memória, que é onde ela se embeleza e merece a sua boa
reputação), Fani saiu porta fora e não voltou mais.
Tinha concluído que o amor, uma vez destacado das suas imitações,
não pode mais ser comparado a nada. Preferiu viver só, unicamente
entregue ao prazer da sua história de poucos minutos num autocarro
do aeroporto de Nova Iorque. Era um caso aberrante e único, em
que muitas coisas e pessoas eram traídas. Mas o amor é implacável.
É melhor não deparar com ele nem com os seus sinais. É
melhor.
©Agustina Bessa-Luís
in Linhas Cruzadas,
Uma antologia de contos PT-Telecom, 2000
Til bogen
til forsiden
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autora
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