DOMINGA
Agustina Bessa-Luís
 

Não sei se conhecem Heidelberg, famosa pela sua universidade e os brinquedos de madeira destinados ao Natal. Isto dos brinquedos é coisa minha. Também há ursos cor-de-rosa, com uma grande barriga, como se faziam no século passado, no estilo dos contos ingleses para crianças. Depois os ursos de peluche tornaram-se mais laváveis e sem aqueles focinhos bordados a algodão perlé por uma mulherzinha que usava ainda o avental da camponesa do Palatinado e, provavelmente, os sapatos de montanha, de vitela com ilhós.

Eu passei um Inverno em Heidelberg, em casa duma escritora que estivera a maior parte da vida no exílio e que tinha mais de noventa anos. Era, no entanto, extremamente lúcida e com olhos azuis duma juventude ofuscante. Chama-va-se Dominga. Não sei se era um nome inventado, porque vivera em Santo Domingo durante alguns anos, decerto os mais felizes da sua vida. Fora casada com um diplomata e amava-o com essa austeridade dos sentidos com que algumas mulheres contemplam as suas próprias divagações.

Uma floresta em Heidelberg não é o que pensam. Não se parece com uma floresta, mas com alguma coisa de extinto e que só pertence aos nossos sonhos. Eu imagino que na planície castelhana, onde viviam as tartarugas gigantes antes do aquecimento da terra, havia aquele silêncio que fazia perceptível a queda duma gota de chuva no ar limpo e onde ondulavam as folhas mortas. Levavam uma infinidade de tempo a cair ao chão e eram manobradas pelo vento como as velas dum barco.

A casa de Dominga, um chalet grande e rasgado de muitas janelas, encontrava-se dentro dum pequeno parque sempre húmido e prestes a cair em decomposição. Muitas das casas da floresta estavam encostadas à ravina onde apareciam as corças com ar que lhes ficara do tempo das caudal, um ar delirante de medo que lhes fazia tremer as orelhas. Mas a casa de Dominga era mais do tipo heráldico, com um portão de ferro que, devido à ferrugem, nunca se fechava.

Eu ocupava o quarto voltado a nascente, onde o marido morrera com um cancro do pâncreas, e digo-lhes que levei algum tempo a habituar-me, embora tudo me parecesse elegante e duma extrema e confortável simplicidade. As paredes estavam cobertas por estantes cheias de livros em linguas que eu não entendia, como o russo e o polonês. Num canto havia um lavatório com tampo de mármore e uma saboneteira de loiça. Levantei a tampa e surpreendeu-me um sabonete molhado, como se alguém acabasse de se servir dele.

— Esteve alguém neste quarto antes de mim? — perguntei a Dominga. Ela servia-me o chá e empurrou ligeiramente o prato dos biscoitos que se diriam paciências mas com labor de menta.

— Não. Ninguém usa este quarto há muito tempo. —Fez uma pausa embaraçada e disse: — Era o escritório do meu marido.

Já ninguém tinha escritórios e a própria Dominga escrevia no quarto de dormir que era grande, com um leito de campanha e uma pomba de talha dourada pendurada por cima dele. A pomba tinha laivos cor-de-rosa no peito, e Dominga disse que ela sangrava. "É uma pomba estigmatizada" — disse, com uma espécie de humor frio e completamente indiferente ao que eu podia pensar. Eu não pensava nada. Dominga tinha completado noventa anos dois dias antes e tinha recebido a extrema-unção de sua inteira liberdade. Podia dizer o que quisesse, no tom que lhe agradasse, que ninguém a ia censurar. Parecia satisfeita com isso e não deixava de frequentar concertos e colóquios, com o seu ar modesto e caloroso mas que, de vez em quando, era interrompido com uma palavra duma crueldade fruto duma experiência centenária. Não parecia maldosa mas justa e sem servilismo algum. Movia-se com a agilidade duma mulher nova, e as tábuas das escadas gemiam com os seus tacões altos.

Ninguém punha em dúvida que ela tivesse tido grande beleza, do tipo ingénuo que atrai a atenção de grandes homens em que a vaidade é predominante, como decerto fora o defunto marido, um judeu marroquino, dum encanto singular. Mas o que tornava Dominga interessante era a sua memória, verdadeiramente excepcional. Eu viera para uma visita de cinco dias e fiquei um mês, suportando o duro Inverno palatino e valendo-me das roupas emprestadas que Dominga me oferecia: luvas e passa-montanha com uma espessura impressionante. A chuva caía sem parar e a rua estava juncada de folhas amarelas e vermelhas como uma bandeira destroçada. Nós estávamos ao abrigo, na sala quente onde o bule de chá parecia igualmente vivo e concentrado no seu calor. Era um bule de ferro, chinês, que Dominga dizia ter comprado em Copenhague.

Dominga conhecera muita gente célebre e era bom ouvi-la falar de Menuhin e de Thomas Mann, que ela considerava modelos de antipatia e de sucesso relutante. Porque à admiração junta-se sempre um ódio inconfessável e um espírito destruidor. Mas de quem ela falava com verdadeira emoção era de Saint-Exupery, que decerto tinha amado na juventude. Sabia muitos pormenores da sua vida, que não era tão aventurosa como se dizia, mas que tinha qualquer coisa de melancólico. Dominga pensava que ele tinha sangue marrano, como é frequente nos provençais cultos, e que isso o tornava errante e difícil de descrever.

— Fui testemunha das suas últimas experiências, e digo-lhe que isso são coisas que nunca se esquecem.

—Como assim? — disse eu, disposta a moderar a minha curiosidade, para não dar a impressão de que ía servir-me das suas confissões, ou o que fosse. Dominga, com a sua blusa de cetim branco, porque esperava alguém que a vinha buscar para um concerto de Malher, tirou um biscoito de menta e mordeu-o ligeiramente.

— Ninguém sabe que o Petit Prince existiu. — Fez uma pausa que eu não me atrevi a interromper, e disse: — Saint-Exupery viu-o em carne e osso e nunca mais foi o mesmo depois disso. Foi em 1941 e morreu tres anos depois de maneira misteriosa.

— Desapareceu no mar da Córsega, ao que se sabe.

— Pois foi. Eu tinha trinta e dois anos e estava casada. Amava muito o meu marido, mas tinha uma verdadeira devoção por Saint--Exupery, que fez de mim o modelo para a figura feminina no Petit Prince. Mas creio que ele estava apaixonado pela criança de seis anos que viu um dia pela mão da mãe e que se chamava Roger. Em geral, quando se fazem alusões a paixões dessas, carregam-nas com sentidos aberrantes e difamatórios. Mas pode ser o melhor do sentimento humano, uma revelação quase dolorosa do Paraiso.

— Quem era Roger? — disse eu.

— Já lhe disse. Um menino duma beleza tão radiosa que faz o efeito duma punhalada em pleno coração. Tinha um rosto celestial e os olhos azuis fitavam-no com esperança e tristeza. A esperança é triste. Basta despontar na inteligência para que uma fonte de lágrimas nasça no interior da nossa alma. Pelo menos foi o que Saint-Exupery me disse. Nunca o achei grande escritor, mas tinha o sentido do enigma, que faz as pessoas propensas à fatalidade.
O vento vergava as árvores que pareciam dançar de braços abertos, e eu encolhi-me no meu lugar junto da chaminé. Um monte de recordações acudiram ao meu pensamento e, ainda que algumas fossem felizes, tornavam-se tristes quando eram evocadas. Eu estava a ser arrastada para um mundo que não era o meu, um mundo de devastação e inefável melancolia. Parecia que contemplava ruínas antigas para as quais as mais belas civilizações tinham contribuído.

— Saint-Exupery falou-me de Roger, que ele viu unicamente uma vez. Era uma criança perfeita, com a gravidade das crianças imortais.

— Imortais, como?

— Ele estava convencido de que Roger era imortal e que viera ao mundo para levar com ele as pessoas desesperadas. São pessoas admiráveis.

— Cada um admira à sua maneira, como dizia Gogol. Uns apontam com o dedo, outros com o guarda-chuva. Os pequenos lacaios trocam chalaças estúpidas e os velhos lacaios deitam em volta um olhar solene, para matar o tempo.

— Ah, leu Gogol! Não posso fazer nada por si. Quando se leu Gogol (ali o tem em russo, ao meio dessa estante, na terceira prateleira) não há nada que se possa fazer porque aquele problema existe.

— Qual problema?

— O de se estar para alem da imaginação. É quando vemos, exactamente, quando vemos, que existe para o homem um limite ao qual o conduzem todos os seus conhecimentos. Um limite assustador. Saint-Exupery tinha passado esse limite, creio que sim. Tinha passado para lá da imaginação e Roger deu-lhe a mão para o levar para lá.

Ela semicerrou os olhos com uma espécie de deleite e, de repente, o velho rosto pareceu liso e juvenil. Devia estar a viver o seu encontro com Saint-Exupery, quando a guerra não fechara ainda as asas membranosas sobre a Porta de Brandenburg. Depois fugira para a Grécia e a Itália, indo desembarcar em Santo Domingo, onde ficou com chapéu de palha e cavalos de raça. Devia ter gratas recordações desse tempo porque sempre semicerrava os olhos, ofuscada de plenitude, quando falava da Republica Dominicana. Mas isso não ocupava agora os seus pensamentos, mas sim factos muito mais longínquos. Um dia, eu disse-lhe:

— Como é que se refere à jovem mulher na história do Petit Prince? Não há mulheres no planeta daquele menino de seis anos com o pequeno cordeiro, dentro da caixa. Não há, absolutamente.

— Isso é que há. São as flores, repare bem. "Não se devem ouvir as flores. É preciso só olhar para elas e respirar-lhes o perfume." Eu era o modelo, cheio de contradições, complicada demais para ser amada por um rapaz. "Eu era demasiado novo para saber amar." Era das mulheres que se tratava. Os homens muito novos não sabem amar as mulheres. Mas não impede que o amor seja respirável à sua volta.

— Como era ele? Pode-me dizer?

— Antoine? Sempre tive um fraco pelos homens com esse nome. Talvez porque me sugerem tentações profundas, como no caso do Santo António do Egipto, um homem extraordinário. Era falador e superficial como se diz, Saint-Exupery?

— E que fosse? Os faladores sempre escondem qualquer coisa. Aquele encontro com a criança foi o desfecho. Bá! Aprendi com ele que não se devem chorar os mortos. Não toma mais chá?

Não reparou que não havia chá no bule nem biscoitos no prato. Dominga vivia numa penúria elegante; viam-se, pela porta aberta da sala de banho, os frascos de loções alinhados numa prateleira e saquinhos de algodão azul para maquilhagem. Vestia umas calças pretas e a sua quase luxuosa blusa de cetim dos concertos de Câmara. E pérolas.

— Penteio-me para não me sentir velha e não para as estrelas.

— É uma frase do Voo da Noite, se não estou em erro.

— Mais ou menos. Lembro-me de conversas que tivemos. Era um homem para quem a solicitude, tão necessária no casamento, aborrecia. Vestia-se de militar, mas tinha dificuldade em ser um militar. Não está no sangue provençal. Que tarde tempestuosa! Não sei como poderão vir-me buscar.

— Eu levo-a aonde quiser.

— Não tinha graça. Prefiro esperar. Sempre foi assim comigo. A espera agrada-me. É uma maneira de jogar com alguém que nos enfrenta do outro lado.

— Havia uma mancha de sabonete no lavatório do meu quarto. Estava fresca, como se acabassem de o usar — disse eu, como se cometesse um erro. Dominga levantou-se e saiu da sala, talvez para não me dar resposta. Quando voltou, trazia o casaco vestido. Não propriamente um casaco, mas um impermeável forrado de peles bastante enxovalhado, mas que não perdera o seu vigor de grande e belo agasalho.

— Vou descer para esperar lá em baixo.

— Vai apanhar frio.

— Ah, não posso habituar-me demasiado ao conforto. Não é saudável. Tenho que descer e subir as escadas e sentir as mãos geladas de empurrar o portão ferrugento. Já nem range, de tanta ferrugem que tem. É irreparável e, ao mesmo tempo, é consolador. Há coisas que nos consolam porque são irreparáveis. Imagine que tudo se podia compor neste mundo. Que os dinossauros voltavam, que os judeus se levantavam das fossas onde foram empilhados como lixo. Será que tínhamos cara para os receber? O dó é necessário. A cólera e necessária.

Isto, dito por aquela pequena mulher que não perdera o fulgor duma inocência formal, causava um certo embaraço. Ouvi o carro chegar e vozes na entrada da casa.

— Volto cedo, mas vá para o meu quarto ouvir música. Ou ler. É melhor iluminado e tem uma acústica esplêndida.

Saiu a correr, como uma rapariga de vinte anos, e ficou na escada um perfume de flores que ela usava. Houbigant. Talvez tivesse ainda um velho frasco bojudo com um rótulo de papel envernizado.

Não era a primeira vez que eu ficava só em casa, mas a noite tempestuosa entrava como um grande suspiro pelas frinchas das janelas. Dei uma volta, experimentando os fechos das portadas, à antiga, que pareciam portas de sacrários. Os retratos de família estavam, como num cemitério, postos meio de esquina em cima duma mesa. Era o marido de Dominga no seu melhor de galã latino, um sefardita de boca espessa mas delicada. Havia também a mãe, doce e claramente rica e protegida. "Morreram todos", dizia Dominga, como se fosse uma órfã muito jovem. Os seus noventa anos pareciam leves e irreais. Dei de cara com a pomba suspensa sobre o leito meio desmanchado. Movia-se ligeiramente, como sob o efeito duma corrente de ar. Parecia, vista na penumbra, um daqueles aviões que, suspensos dum fio, davam voltas no ar. Pequenos zepelins ou monoplanos no estilo Lindbergh. Mas uma coisa chamou a minha atenção. Do peito da pomba escorria e gotejava um pequeno fio de sangue. Arredei a cama, para que não se molhasse, e o sangue acabou por cair no chão, formando uma nódoa escura. Talvez fosse apenas tinta que desbotara, e não dei àquilo muita importância. "A cólera é necessária", pensei. Aquela pomba da paz deixava verter das entranhas um apaixonado rio de sangue, impunha-se como a pomba do Espírito Santo descendo sobre os Apóstolos, produzindo neles o milagre da comunicação. A paz podia ter um discurso de sangue? Isto confrangeu-me profundamente. "Desenha-me um cordeirinho" — disse o pequeno Príncipe. O facto de ele ser encantador dava-lhe realidade. Se fosse apenas um rapazinho que vai pela primeira vez à escola, isso não o descrevia tão bem como ser encantador. Eu sentei-me diante da lareira, um pouco chegada para o lado esquerdo, e senti fome. Tantos livros e o frigorifico quase vazio. Apenas um pouco de manteiga e legumes meio murchos. Lembrei-me das abundantes provisões dos estudantes em Georgetown, quando eu lá tinha estado: leite, cereais e salsichas frescas. Tomates que pareciam de vidro e panquecas gotejantes de mel ou licor de érable. Onde estamos nós? A Luz fraquejou, a ventania tinha decerto atingido um cabo eléctrico. Eu gostava de comer, sem isso não podia apreciar Dostoiewsky nem nenhum outro. Nem sequer uma valsa lenta como as que se tocavam em Baden-Baden, à tarde. Agora já não havia gente elegantíssima, de cinta fina e rendas cor de creme. As verdes montanhas, com as crias de corças a saltar sobre as folhas frescas, ainda estavam lá. Mas decerto desapareciam brevemente eram transformadas em bichos de peluche, com enormes pestanas. Ouvi o vento que partia um galho de árvore. Talvez Dominga não voltasse nessa noite. Fui até ao quarto dela. A pomba tinha deixado de gotejar, mas baloiçava-se ainda por cima da cama desfeita. No meu quarto deparei com um facto estranho. Na bacia, onde ninguém se lavava há muito tempo, havia um pouco de água rosada. E o sabão estava molhado Como se tivesse sido usado nessa mesma hora. Talvez alguém metesse uma rosa na bacia e a cor da rosa desbotasse na água; a cor duma rosa invisível. Tive medo, e voltei para a sala. Dominga chegou à meia-noite e deitou para o lado os sapatos enlameados. Eram galochas de borracha.

— Nunca se deve tocar Debussy à noite. É uma perda de tempo. Mas há uma gentinha que não sabe nada — disse; as mãos tremiam-lhe, e era nela o único traço de velhice. — É hereditário — falou com secura, como se desse uma informação clínica. Parecia mal humorada; ela prezava muito o seu mau humor, ajudava-a a ser ela própria. — Só treme o polegar, o resto dos dedos são perfeitamente firmes.

Não me atrevi a fazer daquilo um tema de conversa. Podia sofrer de Parkinson ou qualquer coisa assim.

— Não é Parkinson — disse ela, como se perscrutasse os meus pensamentos. — Quando é que você se vai embora?

— Quando quiser, Dominga. Amanhã mesmo.

— Não quis ser grosseira.

— Eu sei. Mas a cólera é necessária.

Ela calou-se e não parecia afectada pelos meus sentimentos. Eu fizera-lhe companhia durante um mês, cozinhara para ela champignons e carne de alce, mas não via motivo para me agradecer. Era a pessoa mais ingrata que eu tinha encontrado. Como o Petit Prince, como o próprio Saint-Exupery, que não tinha pinga de modéstia no coração. E que era incapaz de solicitude. Mas sabia carregar um homem de laços ternos, de música, de amor e de flores! "Na hora de cada separação, esses laços, sem que ele parecesse sofrer com isso, caíam." Seria que ela fora a exasperada amante dum homem a quem as satisfações humanas não diziam nada? Só assim ela pudera ficar tão distante do tempo partilhado e que se quer gozar, poupar e receber como um salário.

No dia seguinte fui-me embora. Mantive sempre por Dominga uma boa lembrança. Sem amizade alguma, e essa é a melhor. Mas, por Saint-Exupery, com o seu cordeiro enfermo na ponta do lápis, guardei um amor excepcional. O que é um amor excepcional? O que se inventa no mais profundo do coração, sem nome, sem esperança que, como sabemos, é a mais enganadora das virtudes.

Porto, 10 de Novembro de 1999

 


©Agustina Bessa-Luís

Guimarães Edit. 1999


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