UM
INVERNO FRIO
Agustina Bessa-Luís
Agora que se divulga escolarmente todo o quadro da sexualidade, desde a erótica de família até à libertinagem tecno-urbana, lembra-me um caso que se deu em Bóbeda, num Inverno frio. Bóbeda fica numa região plana, gretada pela geada e onde se plantam as belas couves de Natal, grandes como arbustos, turgentes e doces; sabem um pouco a leite, e dos seus talos brancos corre mesmo um liquido brilhante, como resina. A casa dos Galeões fica num alto. Tem uma varanda toda ajanelada, como um comboio, e vê-se de longe, muito chapeada de sol, nos dias claros. Mas nesse Inverno havia um nevoeiro chegado à terra, azul, apertado e igual ao fumo das leiras quentes e azotadas. Os Galeões de Bóbeda eram gente severa, de olhos tristes e com vocação do mando. Os homens notavam-se todos pelo andar debruçado, como se carregassem um fardo; o cabelo embranquecia-lhes cedo. Ocupavam cargos administrativos, eram respeitados e casavam com mulheres ambiciosas que lhes davam muitos filhos. O mais novo, de aspecto quase fúnebre, com a violência mitigada de suavidade cristã que se encontra nos filhos últimos duma mãe devota e sensível ao êxito da família, teve uma carreira tradicional e sem surpresas. Casou-se aos vinte e oito anos com uma jovem de Vila Pouca, bonita, áspera e disciplinada. Ele chamava-se João, ela Elisa. Eram altos, bem formados, triunfantes e aparelhados em tudo. Pertenciam à casta do lusitano fronteiro, que necessita de inimigos para não enferrujar o arnês e que anda sempre atrigado com as bulas de Roma e a cólera do rei. Comiam com moderação, mas davam um jantar no primeiro sábado depois da Páscoa e em que se assava um boi inteiro. Não serviam iguarias caras, nem mesmo peixe. Um dos de Bóbeda tinha recusado uma herdeira rica porque a mãe dela mandara vir do Porto sável em Março, quando havia ainda neve e as diligências ficavam retidas no Alto da Abobreira. Os de Bóbeda amavam o fausto como testemunho de força, mas desprezavam a prodigalidade. Nos primeiros anos de casado, João Galeão foi muito feliz, prosperou, baptizou quatro filhos, lançou-se na politica e escreveu um livro sobre registros vinculares. Era doutor em leis e tinha alma de chanceler. No ano de 1962, foi ao Porto provar um fato de cheviote, assertoado; visitou um irmão da mãe, antiquário, e passou com ele uma noite agradável, falando de assuntos elevados — de morgadios, da crise agrícola e do casamento de sua prima com um delegado. «Certinho, mas nada esperto» — dizia o tio Ascenso. Ele era um homem da Renascença, um Ludovico o Mouro entendido em barroco exorbitante. Gostava da intriga, duma maneira artística; ela era a sua opera, o seu pas-de-quatre. João encontrou na casa do tio Ascenso uma criatura, singular. Era uma rapariga, que tratava das crianças e falava com elas inglês. Não se tratava duma miss — só duma criada qualificada. Tinha estranhos talentos. Quando João entrou na sala de jantar para ir buscar o seu copo de brandy, viu-a. Estava deitada de bruços no chão, e partia avelãs com o salto do sapato. As crianças seguiam a operação com grande interesse, e de vez em quando riam-se baixinho, com aquele riso vibrante e rápido que soa como o grito duma ave. João não pareceu impressionado; mediu a garrafa com o olhar antes de se servir, como era seu costume, deitou um pouco de brandy no copo e saiu. A rapariga olhou um momento para ele. Tinha uns olhos a que as pestanas carregavam a cor. Eram castanhos, e os dentes arredondados e certos. O incisivo estava um pouco quebrado. João reparou nesse pequeno defeito, mas nunca mais lhe ocorreu nada daquilo. Partiu no dia seguinte para Bóbeda, e ai se manteve sem que houvesse alterações na sua vida durante uns meses. Era um marido dedicado e um pai exemplar. De repente, Elisa deu que falar. Fez-se gastadora, saía muito e chegou a ser julgada uma mulher leviana; um viúvo apaixonou-se por ela e estava disposto a fazer loucuras, como levá-la para Madrid. João tomou tudo aquilo com muita fleuma, sofrendo com dignidade a sua desilusão. Uma afilhada que vivia na casa e tinha quinze anos foi seduzida por um homem do campo, velho já e com seis filhos. Tio Ascenso teve uma historia bastante enigmática com ameaças de morte; uma criada dele provocou um incêndio em casa, perderam-se objectos valiosos; a mulher adoeceu, foi dada como incurável e morreu quase imediatamente e sem que isso motivasse surpresa e até luto. Era um espanto organizado. João ouvia todos os dias o relat6rio dos desastres acontecidos entre amigos e familiares, e o seu coração não batia com menos regularidade. As vezes saia a pé e, se encontrava um gato meio afogado numa ribeira, trazia-o e cuidava dele. Enriquecia e vigiava com muita prudência os seus negócios. Tratava Elisa com respeito e beijava-a carinhosamente; mas achava que ela tinha os cabelos ralos e meio esverdeados. «Talvez seja porque esteja velha!» — pensava. E sentia uma ternura delirante e fácil. A sua alma estava suspensa duma memória que não chegara a abrir-se. Julgava que o mundo sofria duma estranha decomposição; subitamente apetecia-lhe mudar de casa, de país, de costumes; comprava pratas antigas, fazia a sua árvore genealógica, comemorava datas, tinha grandes ideias, gostava de ler a necrologia nos jornais, ouvia música clássica. Elisa deixou-o, por fim; ninguém encontrou justificação para isso. Em dez anos João não mudara; os outros sim. A própria mãe se tornou um pouco azeda, um pouco herege, e morreu de congestão ao meio-dia, enquanto comia uma pêra-de-água. Encontraram-na já fria, com os olhos abertos, um ar de ira sobrenatural no rosto miudinho. João beijou-lhe as mãos; ficou calado, sem lágrimas. E, de repente, viu na polpa do fruto a marca dum dente incisivo meio quebrado. Pôs-se a chorar, a chorar. «Meu Deus — disse —, meu Deus, Senhor!» Bóbeda no Inverno é vidrada de geada; o sol não sobe acima da linha da plantação nova dos vidoeiros. Quem vai na estrada vê a casa dos Galeões de Bóbeda, que fica num alto. É como um comboio, com as suas muitas janelas de guilhotina e a chaminé que espalhava dantes o seu fumo espesso, constelado de fagulhas. Agora usam gás, ou não sei quê.
©Agustina Bessa-Luís in Colóquio Letras nr.16, 1973 |