OS LILAZES FLORESCEM
EM S. PETERSBURGO

Logo depois do 25 de Abril de 1974, data da que foi chamada a Revolução dos Cravos, houve uma euforia dos partidos de esquerda, uma espécie de felicidade generosa com os seus efeitos sobre a cultura. As viagens à Rússia foram animadas sem grande discriminação politica, e foi assim que se organizou um grupo, bastante ecléctico, para travar conhecimento com S. Petersburgo. Eram oito pessoas: um psiquiatra, um padre, uma directora de museu, três burguesas ricas e mais duas personagens que eu não conheço. Provavelmente gente das Artes, um poeta que lera Pouchkine e não sei quem mais. Estes desconhecidos faziam o coro, como nas tragédias gregas, e carregavam com os guarda-chuvas e uma bagagem menor, de facto bastante misteriosa. Verificou-se depois que eram imagens da Sagrada Família e da Senhora de Fátima, que deixavam debaixo das camas nos hotéis onde passavam.

A viagem decorreu normalmente ate que todos se relacionaram melhor. Tenho para mim que a intimidade não favorece as relações, ate as azeda ou descobre os motivos mais assustadores para entrar em desacordo. Com a chegada a S. Petersburgo os espíritos ganharam melhor disposição, e os turistas trataram de se organizar par afinidades. As três burguesas calçaram sapatos confortáveis, tendo pela frente a Perspectiva Nevsky e a dimensão faraónica do Ermitage. No princípio queriam ver tudo e fotografar o que pudessem. Depois tomaram-se mais caseiras e só saíam do hotel para ir comer doces ao Café de Viena e comprar pedras dos Urais. Tinham verdadeiro pavor de lhes ser servido aligátor com molho picante e praticamente nunca comiam fora do hotel, que se tomou num abrigo quente e silencioso. Via-se o Neva das janelas e as noites claras davam um sentimento de romântico despojamento. Era como se estivessem numa cidade donde tinham partido os habitantes e as ruas desertas guardassem o eco dos seus passos.

Depois de um dia arrasador, o grupo reunia-se num dos quartos, o melhor, que tinha uma antecâmara e um velho tapete que fora formosíssimo e digno dum palácio da Rua dos Milionários. Falava-se de tudo, sobretudo do país e dos lugares onde viviam, e parecia estranho como o contacto com tantas coisas novas e extraordinárias valorizava a rotina das suas vidas. Trocavam memórias familiares, e o padre Crespo chegou a dizer missa na própria habitação com a assistência de boa parte dos viajantes. Pusera gravata em vez da sua volta engomada, mas a Rússia ainda era para ele um local sulfuroso e inquietante.

Entre as pessoas mais curiosas estava o psiquiatra. Era um homem novo que trabalhava num hospital de alienados e que fumava cachimbo de maneira pensativa e sedutora. Gostavam da companhia dele e reuniam-se sempre que podiam, para o ouvir falar, em geral, de mulheres. Para ele, as mulheres eram doentes intratáveis e predispostas a ideias extravagantes.

— Se estão convencidas que podem ser fecundadas pelo vento, não há nada a fazer — disse ele. — De resto, os croatas acreditam nisso. E as éguas da Lusitânia diziam que eram tão velozes porque eram fecundadas pelo vento. Só que as éguas não acreditavam.

— A sua clientela é feita em grande parte por mulheres — disse o padre.

— Como a sua, reverendo, como a sua.

— Devia ter mais consideração, doutor.

— A minha consideração é uma questão cientifica. Puramente cientifica. As mulheres não são figuras de romance, para mim. São matéria de estudo. Os escritores deviam ter isso mais em conta, e assim não escreviam tantos disparates.

— Disparates, como? — disse um jovem bibliotecário que raramente se juntava ao grupo. S. Petersburgo era para ele um encontro como com uma mulher amada; Vivia em conversa constante com ela e tinha ciúmes de outros olhos que a vissem, a não ser os dele. — Já viu uma mulher de romance tão perfeita como a Ana Karenina?

Houve um suspiro de aprovação, ainda que nem toda agente conhecesse Ana Karenina. O jovem bibliotecário estava comovido, e as mulheres começaram a interessar-se por ele. — Não conheço ninguém como Tolstoi para entrar tão friamente no coração feminino. Ao mesmo tempo que não deixa de ver quanto ela é encantadora com o vestido preto e o colar de pérolas, acrescenta como se nos barrasse o passo: "mas havia algo de terrível e cruel no seu encanto".

— Aí está o escritor. Deixa-se levar pela ficção. Ana não é terrível. Só mais tarde quando adoece é que se toma imprevisível. Começa a tomar ópio depois do parto que não corre bem, como você sabe, e nesse tempo não se pensava que as drogas criavam habituação. Quando se mata, está completamente perdida. Toma ópio habitualmente, e isso explica a sua excitação e a morte horrível. O que se passa com ela não é de todo para Vronsky entender. Se entendesse, saia disso tudo muito humilhado. Onde estava o amor de Ana? "Posso ceder em tudo menos na minha independência de homem", diz ele. Mas tratava-se duma doente, e não duma apaixonada.

— Não acredito — disse uma das senhoras ricas. Tinha-se aproximado da janela e olhado para fora com sorriso esquecido no rosto. S. Petersburgo estava a agir nela como uma espécie de recordação saudosa. Gostaria de ter vivido no tempo da Karenina, quando ela era ainda feliz e não quando começava a agitar a consciência da sociedade petersburguesa onde o marido dela tinha feito carreira e onde formara o carácter de alto magistrado — Eu acho que ela estava mesmo apaixonada. Via-se pela sua alegria, como se o mundo fosse feito de caramelo e não de coisas tristes e repugnantes.

Todos olharam de dentro para a noite branca e resplandecente. Seria excitante ter conhecido o tempo dos Karenine em S. Petersburgo, quando saíam para o Teatro Francês e os cavalos se encabritavam com o frio enquanto desciam a escadaria os embaixadores com as mulheres vestidas de veludo negro. Que bom seria adivinhar aqueles sentimentos sombrios em que o coração costuma alegrar-se aos maus pressentimentos, como se tivessem uma experiência antiga dos seus terríveis passos, mas os ignorasse de forma determinada.

Era uma hora em que todos estavam de acordo apesar das palavras contraditórias que trocavam. As coisas que tinham visto, e sobre as quais falavam sem cessar, deixavam-nos avarentos das suas intimas impressões. Como se um segredo de amor estivesse fechado no melhor das recordações que queriam levar intacta para a pátria. Mas cada um, por uma espécie de jogo, tinha de eleger todas as noites a melhor das atracções da cidade. Para o jovem bibliotecário era a escadaria do palácio Yusupov.

— Uma escada é um documento moral, intelectual e sexual. A escadaria dos Yusupov tem todas estas condições. Decerto foi ao fugir pela escada que Rasputine foi alvejado e deixado ali para lhe darem destino. Morrer numa escadaria tem a sua grandeza. Já não se fazem escadas assim; só se fazem escadas de salvamento, o mundo perdeu as suas artes de fuga. Restam as escapatórias.

— Eu vi a escada do Jordão, é uma obra prodigiosa, disse o padre, com ar convencido e grave. — A família imperial era dali que assistia à cerimónia do baptismo de Jesus, no dia da Epifania. O baptismo no Neva, que nesse dia significava o santo Jordão.

— É uma obra de Rastrelli — e o bibliotecário fechou os olhos com delícia. — Deve-se ter inspirado na escada de Jacob e com certeza que lhe saiu melhor.

— Não diga heresias — disse o padre.

— A sua bênção, não quero ofendê-lo.

As senhoras compuseram-se nas cadeiras, dispostas a fazer a conversa mudar de rumo. Mas todas elas gostavam de escadarias onde os vestidos podiam arrastar majestosamente. As mulheres têm mais o sentido da majestade do que os homens. Talvez porque sonham mais com uma dupla vida onde projectam os desejos absurdos. O psiquiatra não perdia a ocasião de as reunir à sua volta; gostava de as intimidar com as suas lições. Qual era o poder de Rasputine junto das mulheres?

— Um poder indecifrável. Se não é indecifrável, não é poder — disse ele. As senhoras olhavam para as mãos no regaço e não se atreviam a contestar. Tinham a ideia de que o psiquiatra as podia meter, como elas diziam, "em maus lençóis". Estas conversas passavam-se à noite, depois dos passeios e das visitas aos museus e as igrejas. A cidade monumental esmagava-os, era preciso escolher um detalhe para entrar no seu lado humano, escolhiam-se as fontes e jardins e tudo o que impressionava a imaginação. Majestosa, poética, marcada par datas gloriosas, S. Petersburgo chamava-os com a voz de prata que corria debaixo das suas pontes. Todas as vozes eram fracas para a contar; tomavam-se mais fortes quando a saudade as fosse lembrar. As senhoras levavam com elas as lendas e as imagens comoventes, como a da Rapariga da Ânfora sentada sobre o lago, na sua "tristeza sem tempo".

— Está triste porque partiu o cântaro, mas isso não explica tanta tristeza. O namorado deixou-a, essa é que é a verdade, e ela pensa nos dias felizes em que estavam juntos e enlaçados pela cintura — disse o bibliotecário.

— Os namorados não se enlaçam pela cintura — disse o psiquiatra. — Não dá jeito nenhum. Em geral a mulher é mais baixa e fica pendurada, faz uma triste figura. É assim: só conheço uma mulher que pode ser abraçada pela cinta, é aquela actriz Vanessa Redgrave.

— Não sei quem é — disse o bibliotecário. O padre tomou isso como uma distinção, mas tratava-se dum rapaz de vinte e oito anos e as actrizes antigas não lhe diziam nada. Não eram tão importantes para serem históricas.

— Não deve ser tão importante para ser histórica. Não basta ter grandes pernas e braços, é preciso saber o que fazer com eles. Ana Pavlova sabia o que fazer com os longos braços. Para ser uma grande bailarina é preciso ter braços compridos, foi o que me disseram.

— Ah! — suspiraram as senhoras. E mudaram de conversa como só elas sabem fazer. Já Tolstoi tinha reparado nisso. Que falta fazia Tolstoi em S. Petersburgo! O génio das pessoas e dos acontecimentos deu à cidade aquele carácter misterioso e melancólico. Para dissiparam essa melancolia as senhoras iam às compras. Não julguem que as mulheres vão as compras porque são frívolas. Não, senhor. É para se distraírem da tristeza. Senão teriam que ficar sentadas, com a mão no rosto, como a "Rapariga da Ânfora".

Vejamos o que compravam as senhoras: um ovo de malaquite, uma jarra Gzhel, uma tigela lacada; e um autentico xaile russo como há em Viana, em Portugal. Quando vinham para o hotel e se reuniam no quarto do padre para falar do dia que não passavam juntas, mostravam as coisas que tinham comprado. Os vendedores de rua começavam a montar as suas bancas, mas ainda fazia frio, Floriam. os primeiros lilazes, de cor pálida. Nos países mais quentes a cor deles e mais escura.

Uma das mulheres, que noutra ocasião teria trazido o seu casaco de marta, mas, recém-saída duma revolução não se atrevia a mostrar a sua riqueza, era bonita, um pouco gorda, com pele branca como louça branca. Meu Deus, como era fresca e apetitosa! Os homens não a perdiam de vista, embora as relações dos companheiros de viajem não sejam lá grande coisa. Parecem estar unidos par um juramento de castidade e de boa companhia, o que torna tudo talvez um pouco apagado e até um pouco triste. O desejo esvai-se num café tomado na praça, num museu silencioso onde os quadros mudos resistem ao olhar de milhões de pessoas. São olhares cansados e sem brilho. Quem era capaz de se transportar para 1762, quando Catarina a Grande, na catedral da Assumpção, veste a púrpura imperial? É preciso amar os defeitos dum povo para amar uma pátria. Não façamos caso do que o psiquiatra, o padre e as três burguesas ricas dizem de Catarina. Só um desconhecido, que passeia algumas vezes com o bibliotecário e veste um blusão de couro já bastante surrado, parece encontrar prazer em falar dela. Fala de Catarina como duma mulher extraordinária, como se pode dizer dum homem que ele é extraordinário: vontade, paixão e discernimento. Na vontade se deseja o poder, no discernimento se ilustra, na paixão se idealiza. Olha o momento em que Catarina da janela do Ermitage vê a sentinela coberta pela neve, imóvel e resistente como se de neve fossem os seus pulmões e o coração. Ela, porque tem paixão nas veias, sente pena e confrange-se de ver o jovem tão castigado pelo dever. É nisso que ela é grande e não porque arrasta um manto de arminho. Um nome fica na História e, às vezes, ele quer dizer muitas coisas que a História não conta. O extraordinário não tem memória. É feito de desencontros do espírito humano, a vaidade não lhe toca; é todo um estado de encantamento com que o homem nasce. E, depois, pode ser que o encanto se perca; pode ser que lhe fuja das mãos e entre na profunda corrente do Neva ou doutro rio deste mundo.

O jovem disse que amava Catarina. Assim, como se ela fosse da sua família.

— Como? — disse o padre. — Não me faltava mais nada ter no meu rebanho um favorito de Catarina, parecido com um cãozinho dela, doido por açúcar e por morder o calcanhar dos embaixadores.

— O calcanhar de Aquiles, que ele sabia muito bem onde morder. Não dizia Catarina que os animais têm mais espírito do que se pensa?

O bibliotecário, para quem falar de animais era só falar de ratos e baratas, ou alguma aranha filósofa no canto acima duma estante do Instituto de Literatura, mostrou-se renitente.

— Aconselho-lhe o Museu Zoológico. Pode depois falar-me do espírito dos mamutes.

— Não tinham espírito, por isso se extinguiram.

Nesse preciso momento as senhoras apareceram com as suas compras e começaram a tirar os casacos como quem descasca uma cebola. Era na entrada do Verão, mas o ar era fresco. A mais bela de todas trazia de fora um sorriso doce, como quem acaba de ouvir palavras lisonjeiras, ao velho estilo russo: "minha meiga, mãezinha, alminha" e coisas assim que fazem a vida mais bela e nos fazem acreditar que somos amados.

— Vamos lá ver essas compras — disse o psiquiatra. — Os objectos são a nossa alma de trazer par casa. — Uma das senhoras ofereceu-lhe uns chinelos, com o que ele pensou que estava a propor-lhe casamento. Os homens têm ideias sobre tudo. O bibliotecário, que estava meio adormecido, disse:

— O que melhor me deu o sentido da alma russa foi aquele dialogo dos soldados em Sebastopol, como Tolstoi nas conta: "Repara, o nosso Vlang está a comer pão e a chorar". Como se está triste sem que se saiba, meu amigo! As coisas simples pensam por nós.

E a maneira como disse "meu amigo" trouxe ao coração das pessoas lembranças até aí desconhecidas.

Porto, Gólgota — 5 de Abril 2003

Agustina Bessa-Luis


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