Três mulheres, na atitude das três Graças, duas de
costas, uma de frente, como se dançassem. Uma vestida à
camponesa, é a SIBILA. Outra de senhora rica do século antepassado,
é FANNY. A terceira é EMA, num vestido de baile.
Voltam-se lentamente umas para as outras.
SIBILA – Não nos conhecemos.
FANNY – Eu apresento-me: Sou Fanny, filha do coronel Owen. (Tira
a máscara.)
SIBILA – Eu sou Quina, lavradeira. Nasci no campo e aos dez anos
aprendi a governar a casa. Empresto dinheiro a muita gente, mas dantes
não tinha nem para comprar um bacorinho na feira. Nem socos para
o Inverno. E aquela quem é?
FANNY – Quem és? Uma actriz?
EMA – Não sou uma actriz.
FANNY – Uma mulher da vida?
EMA – Não sou uma mulher da vida.
SIBILA – Já se vê que não é. É
uma pessoa educada. Não põe as mãos nas ancas e não
fuma.
EMA – Eu ponho as mãos nas ancas e fumo também. Mas
não sou uma mulher da vida. As aparências enganam.
FANNY – As aparências não enganam, mas provam qualquer
coisa. Mostra-me a tua cara. (EMA tira a máscara.) De facto, as
aparências enganam. Tens cara de anjo.
SIBILA – E porque não há-de ser um anjo? Andam por
aí e a gente não percebe. E preciso ser muito fino para
perceber.
FANNY – Quer dizer que és mais esperta do que eu?
SIBILA – Não quero dizer isso. Nunca se quer dizer a verdade.
EMA – Eu digo quem sou. Sou a mulher do medico. Casei-me por amor,
sabem? Ele vivia do outro lado do rio e eu via-o pelo binóculo
e parecia-me que estava ao meu lado. Parecia que podia arranjar-lhe a
gravata e tirar-lhe um fio do casaco.
FANNY – Um cabelo, queres dizer.
EMA – Um cabelo? Ah, não! Os homens são-me fiéis,
não sei porquê. Acho que tenho qualquer coisa de bruxa.
SIBILA – Não diga isso. As bruxas são pessoas como
nós. (Tira a máscara.) Como nós. Vê?
EMA – Vejo, o que? Devia arranjar-se um pouco e pintar o cabelo.
Ficava muito melhor. Eu não podia andar assim vestida, com meias
grossas.
SIBILA – Faz frio e eu tenho frio.
EMA – Também eu tenho frio. Mas tenho também orgulho.
Não quero que digam que pareço mal, que não sei nada
de modas. Sou bonita ou não sou?
SIBILA – É muito bonita. Mas a boniteza não come com
a gente à mesa.
EMA – Tenho que agradar ao meu espelho. Aos homens, não me
importo. Eles são o meu espelho, também é verdade.
FANNY – Acho que eles a amam. Amam-na como doidos. Choram e torcem
as mãos de desespero, e depois fingem que não sentem nada
e abandonam-na para parecer que não sentem nada. Também
eles têm orgulho.
EMA – Não sei. Esta côr não me assenta bem.
– Veja que movimento tão bonito tem o meu vestido, ao andar.
Parecem as ondas do mar a bater-me nos joelhos.
SIBILA – O mar não é assim. Écomo o leite quando
transborda.
EMA – Seja como fôr, fica-me bem. Reparem quando eu ando.
FANNY – Já reparamos.
EMA – Esse chapéu é horrível. E os caracóis!
Não lava a cabeça nem de mês a mês.
FANNY – Escovo os cabelos de manhã e à noite. O meu
pai dizia que a escova é a grande educadora das raparigas.
EMA. - Acredita nisso?
FANNY – Em matéria de educação não acredito
em nada. Acredito nos hábitos. As mulheres são hábitos
de homens.
EMA – Em que acredita mais?
FANNY – Na vaidade, na obstinação. Na vingança.
SIBILA – Eu acredito nos negócios e nos homens de palavra.
EMA – Meu marido era um homem honesto mas não era um homem
de palavra. Amava-me e morreu porque morri. Mas a palavra destina-se à
vida e não à morte.
FANNY – Um homem que ama nunca é um homem honesto.
EMA – Como diz, senhora?
SIBILA – Ela não quis dizer isso. Tenho a certeza de que
não quis dizer isso.
FANNY – Deixe de querer compor as coisas. Vocês, as mulheres
ignorantes, adulam mais a mentira do que nós, as mulheres instruídas.
Falam por meias palavras, fogem de explicar-se. Porque fazem isto?
SIBILA – Não sei. Quando meu pai explicava o que fazia e
por onde andava, a minha mãe não acreditava nele.
EMA – Acreditava quando ele lhe mentia?
SIBILA – Não. Mas a mentira sempre a consolava mais. Os erros
dos homens são bons de remediar. Basta castigá-los. Mas
quando são honestos, é como se nos expulsassem da vida deles.
Do coração deles.
FANNY – Deixe-me pensar: José Augusto era um bom rapaz. Não
se precisa de ninguém para ser bom; só para ser mau. Eu
vi logo que ele não precisava de mim para nada. Foi um jogo, e
eu perdi.
EMA – Com os homens não se brinca, nem quando não
há nada a perder.
SIBILA – Então, senhoras? Falar dos homens é desenganá-los
de nós. Nunca se diz o principal.
FANNY – O que é o principal?
SIBILA – Vamos contar um caso importante das nossas vidas. Veremos
aí o que é o principal.
FANNY – Começa, já que falaste.
SIBILA – Eu começo. Não sou tímida nem tola,
senhoras. Eu começo: a minha mãe contava que quando tinha
sete anos a chuva apanhou-a no ca-minho para casa. Era já de noite,
porque no Inverno os dias são pequenos, e havia um ribeiro que
ela não podia atravessar. A água tinha subido muito e ela
não via onde pôr os pés. Estava assim aflita quando
um rapaz de para aí dezoito anos chegou à beira dela. "Aonde
vais, menina?" – disse ele. Era loiro como o trigo e levava
na mãos um ramo de marmeleiro. "Segura-te a esta vara que
eu ajudo-te a passar." A minha mãe ficou toda contente e disse-lhe,
já do outro lado do ribeiro: "Senhor Josezinho, muito agradecida".
O rapaz gritou-lhe, quando a viu correr pele caminho fora: "Quando
fores grande, eu caso contigo. Não te esqueças!"
EMA – Que história tão comprida!
SIBILA – Durou anos e anos porque vieram a casar.
FANNY – E o mais importante? O que é o mais importante?
SIBILA – Também se pode fazer a cama no leito dum ribeiro
.
FANNY – Tem graça, a nossa campónia! As coisas saem-te
assim? Não pensas, nem nada?
SIBILA – Pensar, não penso. Choro e rio, que são conversas
que não precisam de estudo.
FANNY – Bom, agora a Bovarinha vai contar qualquer coisa.
EMA – Sei lá! Não conheci a minha mãe. Morreu
quando eu era pequena, muito pequena. Nós tínhamos um oratório
grande como uma carruagem e ele tinha dentro flores de cera e a imagem
duma mulher triste, sentada. Tinha brincos de brilhantes nas orelhas e
sete espadas de prata espetadas no peito. Um dia, o meu pai, que gostava
muito de mim, disse-me: Estes brincos, dou-tos quando fores grande. Podes
usalos nos bailes com um vestido côr de açafrão".
Eu fiquei triste. Devia ficar contente, mas fiquei triste. "Porque
ficaste triste?" – disse-me o meu pai. "Eu quero os brincos;
mas, sem as espadas, os brincos não prestam. Quero as sete espadas
no meu coração." O meu pai começou a chorar.
SIBILA – Essas coisas não se dizem.
FANNY – Querias mesmo as espadas?
EMA – Era o principal. Sem o sofrimento, uma mulher não é
ninguém.
SIBILA – Ai senhora, eu sou alegre e agora mudei. Não quero
mudar, quero ser alegre e ter olhos de doninha para alegrar qum me vê.
EMA – Fala tu agora, Fanny Owen. Não digas que vais ficar
calada.
FANNY – Estava uma tarde com a minha irmã a regar o jardim
e por cima do muro vi dois rapazes que passavam a cavalo. A minha irmã
não os viu, mas eu sim. Vi que ambos se enamoraram dela tãode
repente que parecia coisa de encanto. Eu acredito em coisas de encanto
e bruxedo. Já a minha mãe acreditava. Aprendeu isso no Brasil,
e eu aprendi com ela. Acredito que há sinais que podem mudar a
vida da gente.
EMA – Que sinais?
FANNY – Um pouco de vento, quando não há vento e as
flores nem sequer bolem. Os pássaros não cantam, porque
o calor é muito, e, de repente, uma avezinha cai no chão
sem que ninguém lhe toque. É um presságio. Um sinal.
É preciso rezar logo três Ave-Marias. Mas eu não rezei.
Vi os homens por cima do nosso muro e fiquei a olhar para eles. Apeteceu-me
matá-los. Se tivesse ali uma espingarda, tinha-os matado.
SIBILA – Uma espingarda de dois canos.
FANNY – Não estou a brincar.
SIBILA – Nem eu. Com armas não se brinca.
EMA – O que te fez ter essa ideia? Nunca tive uma ideia assim.
FANNY – Também não tiveste uma irmã assim.
Tão pura, tão doce, tão amiga! Se eu estava doente,
eu ou qualquer pessoa, ela corria a viver a nossa doença. Convencia
a febre a deixar-nos e o sono a cair nos nossos olhos. Era enfermeira
e mãe; era anjo como os anjos com aura ao lado dos altares. Eu
adorava Maria, adorava-a. Não se deve adorar ninguém assim.
Nem Deus.
SIBILA – Não é preciso pecar para nos convencer. Já
chega.
FANNY – Eu era o rapaz da casa. Gostava de ler, de vestir roupas
de homem, de andar a cavalo. O meu pai tinha orgulho em mim. Ensinou-me
a usar o sabre e deu-me uma pistola como prenda de anos.
EMA– A mim deram-me um cestinho de costura. E um anel.
SIBILA – Também tive um anel de ouro e um cordão de
três voltas.
FANNY – Nada disso me interessava. Maria gostava, se gostava! Estava
uma manhã inteira a frisar o cabelo e a escolher o vestido. Parecia
uma santa num andor e os homens ficavam doidos por ela. José Augusto
ficou doido por ela. Entrou em casa cheio de manhas de amor; cheio de
manhas de raposa. Maria caiu-lhe aos pés, coitadinha! Não
resistiu e ficaram noivos, amantes, tudo.
EMA – Casaram-se?
FANNY – Quem casou fui eu. Tirei-lhe o homem como quem tira uma
carteira. Roubei-a, atirei-a para as bocas do mundo, teve que casar com
um enfermeiro pobre que a levou com o dote e a fama de enganada. Assim
acabam os amores inocentes.
EMA – Foi muito mal feito. Não tens alma Fanny Owen.
FANNY – A alma é um vicio.
SIBILA – A alma é o suspiro de Deus na nossa boca. Maria
não merecia isso. As mulheres precisam de compaixão. O amor
vem depois.
FANNY – A compaixão vem depois. Matei-me de compaixão
e morri virgem como nasci. Por compaixão. O prazer da culpa ajudou-me
a morrer.
EMA – É horrível.
SIBILA – São coisas deste mundo.
EMA – Vamos pôr as nossas máscaras e voltar para o
nosso lugar. Elas escondem que somos iguais aos homens e que temos direito
ao reino deles. Mas como os iguais não se podem amar, temos que
usar estas mascaras de ferro toda a vida.
FANNY – Estou a pensar se Maria alguma vez me perdoou.
EMA – Não me parece que o perdão te interesse para
nada. Ele estragava o prazer da culpa, como lhe chamas. Entre todos os
prazeres de homem, esse deve ser o mais digno dum apreciador. A culpa
é uma forma de maturidade. Eu nunca senti culpa de coisa nenhuma.
SIBILA – Se não formos culpados de qualquer coisa, então
o que fica é muito pouco. Sem a culpa, somos só barriga.
FANNY – Bonita cantiga, bonita cantiga! Somos todas barriga, somos
todas barriga.
EMA – Cala-te, cala-te. Voltemos ao nosso pedestal como as três
Graças que somos.
SIBILA – Eu não gosto muito de lugares altos.
FANNY – Nem eu, nem eu. Anda, eu seguro em ti.
SIBILA – Então, vamos.
Sobem para o sitio das Graças e ficam transformadas
em estátuas. EMA volta a mexer-se e pergunta:
EMA – Não disseste o mais importante, Fanny.
FANNY põe o dedo nos lábios, pedindo silencio. Ficam imóveis.
Agustina Bessa-Luís 1998.
Esta peça foi erradamente editada pela Babel em
2014 como sendo um texto inédito.
Posteriormente encenado como ópera (!) na Fundação
Gulbenkian.
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