TRÊS MULHERES COM MÁSCARAS DE FERRO

Peça de teatro de Agustina Bessa-Luís


Escrita em três folhas A4 e emendada à mão por ela própria numa tarde de Verão de 1998
para uma representação do “Quase Teatro” (posta em cena por Maria Helena Padrão e Arlete Sousa
integrando a comemoração dos 50 anos de vida literária da autora
organizada pela Universidade Fernando Pessoa em Arca d’Água, no Porto)
a que assisti na companhia dela.
Jorge Braga

 





Três mulheres, na atitude das três Graças, duas de costas, uma de frente, como se dançassem. Uma vestida à camponesa, é a SIBILA. Outra de senhora rica do século antepassado, é FANNY. A terceira é EMA, num vestido de baile.

Voltam-se lentamente umas para as outras.

SIBILA – Não nos conhecemos.
FANNY – Eu apresento-me: Sou Fanny, filha do coronel Owen. (Tira a máscara.)
SIBILA – Eu sou Quina, lavradeira. Nasci no campo e aos dez anos aprendi a governar a casa. Empresto dinheiro a muita gente, mas dantes não tinha nem para comprar um bacorinho na feira. Nem socos para o Inverno. E aquela quem é?
FANNY – Quem és? Uma actriz?
EMA – Não sou uma actriz.
FANNY – Uma mulher da vida?
EMA – Não sou uma mulher da vida.
SIBILA – Já se vê que não é. É uma pessoa educada. Não põe as mãos nas ancas e não fuma.
EMA – Eu ponho as mãos nas ancas e fumo também. Mas não sou uma mulher da vida. As aparências enganam.
FANNY – As aparências não enganam, mas provam qualquer coisa. Mostra-me a tua cara. (EMA tira a máscara.) De facto, as aparências enganam. Tens cara de anjo.
SIBILA – E porque não há-de ser um anjo? Andam por aí e a gente não percebe. E preciso ser muito fino para perceber.
FANNY – Quer dizer que és mais esperta do que eu?
SIBILA – Não quero dizer isso. Nunca se quer dizer a verdade.
EMA – Eu digo quem sou. Sou a mulher do medico. Casei-me por amor, sabem? Ele vivia do outro lado do rio e eu via-o pelo binóculo e parecia-me que estava ao meu lado. Parecia que podia arranjar-lhe a gravata e tirar-lhe um fio do casaco.
FANNY – Um cabelo, queres dizer.
EMA – Um cabelo? Ah, não! Os homens são-me fiéis, não sei porquê. Acho que tenho qualquer coisa de bruxa.
SIBILA – Não diga isso. As bruxas são pessoas como nós. (Tira a máscara.) Como nós. Vê?
EMA – Vejo, o que? Devia arranjar-se um pouco e pintar o cabelo. Ficava muito melhor. Eu não podia andar assim vestida, com meias grossas.
SIBILA – Faz frio e eu tenho frio.
EMA – Também eu tenho frio. Mas tenho também orgulho. Não quero que digam que pareço mal, que não sei nada de modas. Sou bonita ou não sou?
SIBILA – É muito bonita. Mas a boniteza não come com a gente à mesa.
EMA – Tenho que agradar ao meu espelho. Aos homens, não me importo. Eles são o meu espelho, também é verdade.
FANNY – Acho que eles a amam. Amam-na como doidos. Choram e torcem as mãos de desespero, e depois fingem que não sentem nada e abandonam-na para parecer que não sentem nada. Também eles têm orgulho.
EMA – Não sei. Esta côr não me assenta bem. – Veja que movimento tão bonito tem o meu vestido, ao andar. Parecem as ondas do mar a bater-me nos joelhos.
SIBILA – O mar não é assim. Écomo o leite quando transborda.
EMA – Seja como fôr, fica-me bem. Reparem quando eu ando.
FANNY – Já reparamos.
EMA – Esse chapéu é horrível. E os caracóis! Não lava a cabeça nem de mês a mês.
FANNY – Escovo os cabelos de manhã e à noite. O meu pai dizia que a escova é a grande educadora das raparigas.
EMA. - Acredita nisso?
FANNY – Em matéria de educação não acredito em nada. Acredito nos hábitos. As mulheres são hábitos de homens.
EMA – Em que acredita mais?
FANNY – Na vaidade, na obstinação. Na vingança.
SIBILA – Eu acredito nos negócios e nos homens de palavra.
EMA – Meu marido era um homem honesto mas não era um homem de palavra. Amava-me e morreu porque morri. Mas a palavra destina-se à vida e não à morte.
FANNY – Um homem que ama nunca é um homem honesto.
EMA – Como diz, senhora?
SIBILA – Ela não quis dizer isso. Tenho a certeza de que não quis dizer isso.
FANNY – Deixe de querer compor as coisas. Vocês, as mulheres ignorantes, adulam mais a mentira do que nós, as mulheres instruídas. Falam por meias palavras, fogem de explicar-se. Porque fazem isto?
SIBILA – Não sei. Quando meu pai explicava o que fazia e por onde andava, a minha mãe não acreditava nele.
EMA – Acreditava quando ele lhe mentia?
SIBILA – Não. Mas a mentira sempre a consolava mais. Os erros dos homens são bons de remediar. Basta castigá-los. Mas quando são honestos, é como se nos expulsassem da vida deles. Do coração deles.
FANNY – Deixe-me pensar: José Augusto era um bom rapaz. Não se precisa de ninguém para ser bom; só para ser mau. Eu vi logo que ele não precisava de mim para nada. Foi um jogo, e eu perdi.
EMA – Com os homens não se brinca, nem quando não há nada a perder.
SIBILA – Então, senhoras? Falar dos homens é desenganá-los de nós. Nunca se diz o principal.
FANNY – O que é o principal?
SIBILA – Vamos contar um caso importante das nossas vidas. Veremos aí o que é o principal.
FANNY – Começa, já que falaste.
SIBILA – Eu começo. Não sou tímida nem tola, senhoras. Eu começo: a minha mãe contava que quando tinha sete anos a chuva apanhou-a no ca-minho para casa. Era já de noite, porque no Inverno os dias são pequenos, e havia um ribeiro que ela não podia atravessar. A água tinha subido muito e ela não via onde pôr os pés. Estava assim aflita quando um rapaz de para aí dezoito anos chegou à beira dela. "Aonde vais, menina?" – disse ele. Era loiro como o trigo e levava na mãos um ramo de marmeleiro. "Segura-te a esta vara que eu ajudo-te a passar." A minha mãe ficou toda contente e disse-lhe, já do outro lado do ribeiro: "Senhor Josezinho, muito agradecida". O rapaz gritou-lhe, quando a viu correr pele caminho fora: "Quando fores grande, eu caso contigo. Não te esqueças!"
EMA – Que história tão comprida!
SIBILA – Durou anos e anos porque vieram a casar.
FANNY – E o mais importante? O que é o mais importante?
SIBILA – Também se pode fazer a cama no leito dum ribeiro .
FANNY – Tem graça, a nossa campónia! As coisas saem-te assim? Não pensas, nem nada?
SIBILA – Pensar, não penso. Choro e rio, que são conversas que não precisam de estudo.
FANNY – Bom, agora a Bovarinha vai contar qualquer coisa.
EMA – Sei lá! Não conheci a minha mãe. Morreu quando eu era pequena, muito pequena. Nós tínhamos um oratório grande como uma carruagem e ele tinha dentro flores de cera e a imagem duma mulher triste, sentada. Tinha brincos de brilhantes nas orelhas e sete espadas de prata espetadas no peito. Um dia, o meu pai, que gostava muito de mim, disse-me: Estes brincos, dou-tos quando fores grande. Podes usalos nos bailes com um vestido côr de açafrão". Eu fiquei triste. Devia ficar contente, mas fiquei triste. "Porque ficaste triste?" – disse-me o meu pai. "Eu quero os brincos; mas, sem as espadas, os brincos não prestam. Quero as sete espadas no meu coração." O meu pai começou a chorar.
SIBILA – Essas coisas não se dizem.
FANNY – Querias mesmo as espadas?
EMA – Era o principal. Sem o sofrimento, uma mulher não é ninguém.
SIBILA – Ai senhora, eu sou alegre e agora mudei. Não quero mudar, quero ser alegre e ter olhos de doninha para alegrar qum me vê.
EMA – Fala tu agora, Fanny Owen. Não digas que vais ficar calada.
FANNY – Estava uma tarde com a minha irmã a regar o jardim e por cima do muro vi dois rapazes que passavam a cavalo. A minha irmã não os viu, mas eu sim. Vi que ambos se enamoraram dela tãode repente que parecia coisa de encanto. Eu acredito em coisas de encanto e bruxedo. Já a minha mãe acreditava. Aprendeu isso no Brasil, e eu aprendi com ela. Acredito que há sinais que podem mudar a vida da gente.
EMA – Que sinais?
FANNY – Um pouco de vento, quando não há vento e as flores nem sequer bolem. Os pássaros não cantam, porque o calor é muito, e, de repente, uma avezinha cai no chão sem que ninguém lhe toque. É um presságio. Um sinal. É preciso rezar logo três Ave-Marias. Mas eu não rezei. Vi os homens por cima do nosso muro e fiquei a olhar para eles. Apeteceu-me matá-los. Se tivesse ali uma espingarda, tinha-os matado.
SIBILA – Uma espingarda de dois canos.
FANNY – Não estou a brincar.
SIBILA – Nem eu. Com armas não se brinca.
EMA – O que te fez ter essa ideia? Nunca tive uma ideia assim.
FANNY – Também não tiveste uma irmã assim. Tão pura, tão doce, tão amiga! Se eu estava doente, eu ou qualquer pessoa, ela corria a viver a nossa doença. Convencia a febre a deixar-nos e o sono a cair nos nossos olhos. Era enfermeira e mãe; era anjo como os anjos com aura ao lado dos altares. Eu adorava Maria, adorava-a. Não se deve adorar ninguém assim. Nem Deus.
SIBILA – Não é preciso pecar para nos convencer. Já chega.
FANNY – Eu era o rapaz da casa. Gostava de ler, de vestir roupas de homem, de andar a cavalo. O meu pai tinha orgulho em mim. Ensinou-me a usar o sabre e deu-me uma pistola como prenda de anos.
EMA– A mim deram-me um cestinho de costura. E um anel.
SIBILA – Também tive um anel de ouro e um cordão de três voltas.
FANNY – Nada disso me interessava. Maria gostava, se gostava! Estava uma manhã inteira a frisar o cabelo e a escolher o vestido. Parecia uma santa num andor e os homens ficavam doidos por ela. José Augusto ficou doido por ela. Entrou em casa cheio de manhas de amor; cheio de manhas de raposa. Maria caiu-lhe aos pés, coitadinha! Não resistiu e ficaram noivos, amantes, tudo.
EMA – Casaram-se?
FANNY – Quem casou fui eu. Tirei-lhe o homem como quem tira uma carteira. Roubei-a, atirei-a para as bocas do mundo, teve que casar com um enfermeiro pobre que a levou com o dote e a fama de enganada. Assim acabam os amores inocentes.
EMA – Foi muito mal feito. Não tens alma Fanny Owen.
FANNY – A alma é um vicio.
SIBILA – A alma é o suspiro de Deus na nossa boca. Maria não merecia isso. As mulheres precisam de compaixão. O amor vem depois.
FANNY – A compaixão vem depois. Matei-me de compaixão e morri virgem como nasci. Por compaixão. O prazer da culpa ajudou-me a morrer.
EMA – É horrível.
SIBILA – São coisas deste mundo.
EMA – Vamos pôr as nossas máscaras e voltar para o nosso lugar. Elas escondem que somos iguais aos homens e que temos direito ao reino deles. Mas como os iguais não se podem amar, temos que usar estas mascaras de ferro toda a vida.
FANNY – Estou a pensar se Maria alguma vez me perdoou.
EMA – Não me parece que o perdão te interesse para nada. Ele estragava o prazer da culpa, como lhe chamas. Entre todos os prazeres de homem, esse deve ser o mais digno dum apreciador. A culpa é uma forma de maturidade. Eu nunca senti culpa de coisa nenhuma.
SIBILA – Se não formos culpados de qualquer coisa, então o que fica é muito pouco. Sem a culpa, somos só barriga.
FANNY – Bonita cantiga, bonita cantiga! Somos todas barriga, somos todas barriga.
EMA – Cala-te, cala-te. Voltemos ao nosso pedestal como as três Graças que somos.
SIBILA – Eu não gosto muito de lugares altos.
FANNY – Nem eu, nem eu. Anda, eu seguro em ti.
SIBILA – Então, vamos.

Sobem para o sitio das Graças e ficam transformadas em estátuas. EMA volta a mexer-se e pergunta:
EMA – Não disseste o mais importante, Fanny.
FANNY põe o dedo nos lábios, pedindo silencio. Ficam imóveis.


Agustina Bessa-Luís
1998.

Esta peça foi erradamente editada pela Babel em 2014 como sendo um texto inédito.
Posteriormente encenado como ópera (!) na Fundação Gulbenkian.




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